domingo, 12 de maio de 2013

O perfil da memória de S.


Olá, caro leitor!
Dando prosseguimento ao último post, hoje continuarei algumas descrições e impressões de Luria sobre seu paciente S., e resgataremos algumas questões e características desse tão emblemático sinesteta, bem como finalizarei essa sequência de posts sobre o estudo de caso de Luria.
A partir das últimas questões do autor e suas observações, o mesmo chega à conclusão de que S. era, de fato, diferente de ‘nós’ por suas habilidades de fazer as associações que fazia, apesar de deixar claro algumas dificuldades de S. em expressar tudo isso em palavras. Com base nisso, Luria se pergunta: “Que tipo de mente era essa?”; “Como S. fazia para aprender, adquirir e dominar conhecimento e complexas operações intelectuais?”; “O que diferenciava sua maneira de pensar dos outros?”. (A.R. Luria, 2006 p.83)
Diante da busca por estas respostas, Luria encontra uma grande contradição: no mundo de S., a riqueza de pensamento e imaginação combinava-se curiosamente com limitações de seu intelecto. A partir disto, o autor começa a classificar, separadamente, creio eu que para facilitar nosso entendimento, os pontos fortes e fracos de S. e sua habilidade até então “incrível” e, relativamente, “infalível”.
Uma das formas de classificação que ajudava S. em suas associações era sua forma de pensar “especulativa”. Sua mente era operada pela visão e seu pensamento consistia em operações que realizava sobre suas imagens. Diante disso, ele conseguia se envolver profundamente numa narrativa, por exemplo, por nunca perder um detalhe, por vezes até mesmo encontrando “erros” e contradições em inúmeros contos (como os de Chekhov) e várias outras obras literárias que tinha contato. S. tinha uma “leitura gráfica” das histórias, tendo o foco nos detalhes da trama, diferentemente dos autores, que se preocupavam com as ideias e desenvolvimento do texto.
A mesma facilidade era por S. encontrada para a resolução de problemas práticos e logísticos, por ele ser capaz de projetar e visualizar os acontecimentos e possíveis cenários previamente em sua cabeça. Daí seu “modo especulativo”.

Após a enumeração de alguns pontos úteis e considerados positivos na habilidade de S., o autor põe em questão as “vantagens” da forma de pensar de S..

Nesse ponto, Luria se pergunta: “Haveria riscos em confiar exclusivamente num pensamento figurativo e particularmente sinestésico?”.
S. faz uma afirmação sobre sua habilidade: “Outras pessoas pensam enquanto leem, mas eu vejo tudo”, descreve-se. (A.R. Luria, 2006 p.98)
Porém, uma grande dificuldade ocorria a ele caso lesse rápido demais. Ao formar as imagens em sua cabeça, com velocidade, era causada uma confusão, já que as imagens viriam rápido demais, se sobrepondo, ficando assim deformadas. Por outro lado, se S. fizesse uma leitura muito pausada, também eram criados problemas à sua compreensão, já que enquanto lia um trecho, formava uma imagem sobre ele. No caso de uma descrição contínua de itens, por exemplo, ele teria que desfazer uma imagem já concebida para formar outras que, segundo a sequência de descrição, não estava de acordo com o que imaginara inicialmente.
Assim, essa forma de imaginação de S. poderia representar tanto uma ajuda quanto um obstáculo na aprendizagem dele, já que o impediam-no de concentrar-se no essencial.
Por conta da formação de imagens e ligações de cada palavra a uma respectiva coisa, S. também possuía problemas com sinônimos, homônimos e metáforas, o que causava confusão a ele. Isso se tornou um tormento para sua compreensão de poesias e obras, ricas nestes recursos literários e sentidos figurativos.
Além da capacidade de memória, independente de seus lados positivos e negativos, S. conseguia, através de suas habilidades, ter um grande controle sobre seu corpo, mais do que um homem comum. Ele era capaz de manipular, por exemplo, seus batimentos cardíacos e a temperatura corporal, como exemplifica Luria, relatando alguns dos testes realizados com seu paciente, no qual S., pensando em situações em que estivesse em perigo, faz seus batimentos aumentarem, por exemplo. Ele descreve sua própria habilidade com a frase: “Se quero que algo aconteça, simplesmente imagino-o em minha mente”.
Porém, essas experiências eram subjetivas a S., assim como seu “controle da dor” (na qual relata que conseguia, ao imaginar imagens associadas à dor sofrida numa visita ao dentista, reduzir a dor sentida pelo manuseio de instrumentos em sua boca). Seu corpo, fisiologicamente, sentia os estímulos e os recebia, porém, devido à sua percepção, o que ele sentia era reduzido, ou alterado, por suas impressões sinestésicas, o que não gerou grande resultado nesse sentido à pesquisa de Luria.
Luria esclarece que para S., a linha entre imaginação e realidade era rompida, pois “as imagens que sua imaginação fazia surgir davam uma impressão de realidade” a ele. E isso gerava grandes transtornos a S., por não ter, por vezes, grande discernimento de sua imaginação e realidade, o que causou durante sua vida, comportamentos estranhos, transtornos, sucessivas trocas de emprego etc.
Com tudo isso, Luria conclui, com o estudo de caso de S., que a psicologia deve se focar mais nos aspectos vitais, essenciais da personalidade humana. Podemos voltar aqui, ao conceito e ideia que já expliquei aqui, na apresentação do autor, de “Ciência Romântica”, aonde o sujeito e tudo que o cerca, são essencialmente levados em conta na tentativa de compreensão da problemática ou o que a causa no indivíduo em questão. Compreender o seu contexto, suas vontades, dificuldades, habilidades, origens, dentre uma série de itens que fazem parte da formação do sujeito, interessam a Luria, na tentativa de se encontrar não uma explicação lógica e objetiva do sofrimento de seu paciente, mas, talvez, uma forma de viver, na qual o seu paciente, ou amigo, possa se sentir menos angustiado, sofrer menos com o que se passa em sua mente.
Concluímos aqui, a apresentação dessa obra marcante, que por vezes, em minha opinião, se mostra excessivamente detalhista (talvez um pouco como S.), porém de fácil entendimento e leitura. Porém, ao mesmo tempo, considerando-se a amplitude da história descrita, acredito que seja justo o autor ter se utilizado de tantos exemplos e detalhes para melhor demonstrar a realidade vivida por seu amigo e paciente, S..
Deixo aqui também, um link interessante do site Mundo Estranho que, apesar de tratar como ‘distúrbio’, traz definições simples e de fácil entendimento sobre sinestesia, caso eu tenha deixado a desejar nessa explicação em algum momento.
O site também traz alguns sinestetas ilustres como o pintor, também russo, Kandinsky e o grande guitarrista (do qual sou fã) Eddie van Halen. Vale a pena conferir! http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-e-sinestesia

Referência bibliográfica: "A Mente e a Memória" - A.R. Luria - Martins Fontes, 2006.

Um comentário:

  1. Lucas,

    creio que entendo o porquê do detalhe da descrição de Luria: a mente = a verbalização de S. Assim como eu, Luria pensa que a função da linguagem é ser um dos instrumentos a disposição da mente.Talvez, S. seja ele próprio o instrumento mais sofisticado tecnologicamente que Luria tinha disponivel naquele momento. Luria percebeu que o ser humano é ele próprio um instrumento poderoso que o pesquisador utiliza para estudar a mente. Me parece que a sinestesia está para as capacidades mentais de S. assim como a ingestão de água está para o exame de ultrassonografia. é preciso ingerir muita água para que os orgãos internos se tornem salientes, destacados no exame de ultrassonografia do abdomen. Para que a mente de S. se mostrasse era preciso que a sinestesia atuasse expondo as funções mentais em toda sua potência.

    Um abraço do além

    René Descartes

    PS: Depois que sai da França, vivi muitos anos na Holanda mas não ouvi falar desse tal Van Halen.

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